Política pública que garante nome social a transexuais e travestis é tema de pesquisa

“Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.” O trecho é parte do Código Civil Brasileiro. Mas será mesmo que as pessoas são respeitadas nesse direito básico? Será que seres humanos estão sendo providos com um reconhecimento social mínimo das suas próprias identidades? 


“O começo de tudo pra mim, o que foi mais difícil, foi assumir essa identidade diante da sociedade sabe. Porque para a sociedade não basta eu só chegar aqui hoje e falar: Olha o meu nome é tal! Eu tenho que transparecer e performar o nome com o qual eu estou me apresentando.”


“Tem a questão do acesso aos serviços públicos e outros que a pessoa é obrigada a apresentar a identidade, aí a pessoa que está prestando o serviço nem sempre leva em conta a questão do nome social, principalmente em serviço de saúde. Tive problemas em hospitais, postos de saúde, banco que é outro problema sério.”


As respostas à pergunta que abriram esse texto estão presentes na dissertação “Educação e diversidade: uma análise do uso do nome social no CEFET-MG na perspectiva de sujeitos transexuais e travestis”, produzida pela pesquisadora Luciana Rodrigues no Programa de Pós-Graduação em Educação Tecnológica.


De acordo com a pesquisadora, o interesse pela temática surgiu quando ela leu uma reportagem sobre o uso do nome social que trazia dados sobre violência e exclusão de pessoas LGBTQIA+ tanto da escola, quanto dos demais espaços. A primeira atitude, lembra, foi reconhecer a sua ignorância sobre a vida de pessoas que estavam morrendo enquanto lutavam para existir e serem respeitadas e reconhecidas. “Foi como entrar em outro universo, então decidi que eu precisava fazer pelo menos o mínimo, o que estava ao meu alcance, que era conhecer essa realidade mais de perto e escrever sobre ela, mesmo não sendo meu lugar de fala. Considerei como um dever social contribuir para que mais pessoas pudessem compartilhar dessa realidade e construir novos saberes acerca de um tema tão marginalizado”, relata.


A violência citada pela pesquisadora é um fato bastante conhecido, especialmente no Brasil, país que mais mata pessoas transgênero em todo o mundo, liderança negativa mantida desde que o ranking começou a ser formulado, em 2008. Só em 2021, 140 transexuais e travestis foram mortas, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).


Uma desconstrução histórica


Comportamentos sociais e preconceitos, muitas vezes, são naturalizados porque a sociedade apenas os reproduz, e não lança sobre eles um olhar crítico, ou por falta de acesso à educação de qualidade, que force a abertura do olhar e da consciência para a realidade; ou pelo desejo deliberado de oprimir minorias na tentativa de se manter uma estrutura com papéis sociais demarcados e historicamente construídos.


A filósofa americana Judith Butler, referência nos estudos contemporâneos sobre gênero e diversidade, exemplifica, de forma didática, algumas formas de perpetuação de padrões: quando um bebê nasce e o médico diz: “é uma menina” ou “é um menino”, não se descreve um corpo, mas se produz um sujeito cujos comportamentos já são determinados e incorporados para a produção de uma identidade. De modo semelhante, a expressão cristalizada “Eu vos declaro marido e esposa”, ritual comum em matrimônios, preserva uma lógica de manutenção que produz efeitos sentidos ao longo da vida. Situações como essa revelam, por si só, as resistências e dificuldades enfrentadas por pessoas que não se sentem parte dessa lógica, que não se veem representadas por um modelo social construído para excluir.


Para garantir uma inclusão mínima de sujeitos que percebem sua identidade violada, vem sendo adotado desde 2016 no Brasil o uso do nome social por pessoas transgênero, termo que designa pessoas que transitam entre o gênero masculino e feminino em algum nível, de forma permanente ou não. Um dos objetivos da pesquisa de Luciana Rodrigues foi, justamente, verificar com essa parte da população a eficácia do nome social na efetivação de seus direitos, bem como a sensação de pertencimento ao ambiente acadêmico.


Ação pontual x política pública


A adoção do nome social no CEFET-MG, desde a inscrição para ingresso até a expedição do diploma, é garantida a todos os estudantes sem qualquer burocracia. E o reconhecimento da política se faz presente no relato das pessoas entrevistadas na pesquisa de Luciana Rodrigues. A estudante Patrícia*, por exemplo, não se lembra de ter sofrido qualquer preconceito dentro da Instituição desde que se reconheceu uma mulher trans. “O ambiente acadêmico é muito mais respeitoso, sabe. Desde que eu me assumi no CEFET-MG eu nunca sofri nenhum tipo de preconceito. Eles fizeram o maior esforço para me tratarem no feminino e respeitar o meu nome social. Eu acho isso muito legal. No CEFET-MG eu nunca sofri nenhum tipo de bulliyng por conta da minha condição e em outra escola sim”, relembra.


Luiz*, homem trans, pôde fazer a escolha de falar sobre sua transição de gênero, caso contrário, o assunto seria integralmente preservado. “Desde que eu vim pra cá, desde meu primeiro contato com o CEFET-MG eu não tenho nada a reclamar em questão de respeito quanto ao meu nome, sabe. Meus colegas de classe só souberam que eu era transgênero porque eu quis que eles soubessem, eu me senti à vontade pra falar. Porque, por conta da faculdade, do nome, da chamada ou qualquer outra coisa eles não saberiam disso.”


Já Gabriela* identifica o movimento institucional para a efetivação desse direito, mas não percebe mudanças significativas vindas dos governantes ou de uma demanda da própria sociedade. “Eu vi um pouco isso começar, a questão do nome social, mas é uma adoção feita principalmente por professores, os técnicos que tomam a frente e os alunos que tentam colocar isso em prática, porque, se partisse do governo, isso ficaria muito parado. Eu não vejo a política pública sendo feita por parte dos poderes”, explica. Para ela, as escolas em geral devem pautar a diversidade com todas as alunas e alunos, pois “infelizmente a gente está assistindo a uma tendência contrária a essa discussão.”


*Nomes fictícios utilizados para preservar a identidade das pessoas entrevistadas na pesquisa


Conservadorismo


O movimento contrário percebido por Gabriela diz respeito, sobretudo, à mistura de família, religião e política no Brasil recente. “Infelizmente, nesses últimos anos nossa sociedade se revelou extremamente conservadora em vários aspectos. Há muito tempo não se ouvia tanto as pessoas dizerem que são cristãs e guardarem os preceitos religiosos. Esse tipo de discurso frequentemente é usado para justificar o preconceito contra pessoas LGBTQIA+. Acredito que a política atual trabalha no sentido de legitimar esse discurso e isso endossa as atitudes preconceituosas”, destaca a pesquisadora.


Essas posturas sociais, inclusive, suprimem o dever do Estado de proteger a dignidade da população mais vulnerável e delega essa responsabilidade à família ou à igreja, “instituições que histórica e culturalmente foram legitimadas para decidir acerca da sexualidade humana. Como dizia Foucault, a sexualidade, assim como tantos outros dispositivos sociais, implica relações de poder, de demarcação da diferença, do que é certo e do que é errado, do que é ‘natural’ e do que é anormal. Assim, essas Instituições, há séculos, têm na sexualidade um dispositivo funcional de controle social, é por isso também que a sexualidade aparece até os dias de hoje arraigada nos padrões dessas Instituições”, explica Luciana.


Com o Mestrado, a pesquisadora concluiu que o nome social confere apenas uma cidadania precária ao grupo minoritário que faz uso dele e que a dignidade humana, preconceito constitucional inegociável, depende de uma política pública eficaz “no reconhecimento da pessoa, contemplando sua cultura, suas vivências, sua imagem, seu corpo e sua subjetividade.”


Leia a íntegra da Revista Túnel no site da Secretaria de Comunicação Social (SECOM).


Assessoria de Comunicação do Conif

Texto: Ascom Cefet/MG