Estudantes indígenas, das cinco regiões do país, partilham vivências pelas instituições da Rede Federal

A concepção de que indígenas não têm acesso à cidade, à tecnologia e informação é mais do que ultrapassada. Sabe-se hoje que os povos originários estão presentes em todas as regiões do Brasil, seja dentro de territórios ou em áreas urbanas. Em busca de melhores condições de vida, muitos saem de seus territórios para estudar e, assim, construir uma carreira profissional.


De Norte a Sul do país, é possível encontrar estudantes indígenas que estão em algum curso ou, então, que são egressos da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica.


De acordo com a Plataforma Nilo Peçanha, do Ministério da Educação (MEC), em 2022 haviam 6.994 estudantes indígenas matriculados na Rede – o maior número desde o ano de 2017. À época, a região Norte do país liderava quanto à quantidade desses discentes: 2.143. O Nordeste estava em segundo lugar, com 1.878 estudantes indígenas, seguido da região Sul (1.661), Sudeste (790) e, por fim, Centro-Oeste (522). 


Para incentivar o ingresso e permanência dos estudantes indígenas, a Rede Federal possui iniciativas voltadas para atendê-los. Exemplo disso é a Política de Ingresso Especial e Permanência do Estudante Indígena, do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), aprovada em 2019.


O objetivo dessa política é “constituir um instrumento de promoção dos valores democráticos, de respeito à diferença e à diversidade socioeconômica e étnico-racial, mediante a adoção de uma política de ampliação do acesso aos seus cursos em todos os níveis de ensino e permanência na instituição”.


Desembarcando na outra ponta do Brasil, na região Norte, há um campus formado apenas por estudantes indígenas: o Campus São Gabriel da Cachoeira, do Instituto Federal do Amazonas (IFAM). Em 2017, essa unidade do IFAM lançou o primeiro processo seletivo do país em que o candidato podia escrever a redação em língua indígena.

  

Para a construção desta reportagem, a equipe de Comunicação do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif) entrevistou um estudante de cada região do país para compreender melhor a vivência deles dentro da realidade da Rede.


Região Norte

Nanderson Araújo da Silva, do povo Sataré Mawé, é filho de agricultores e a primeira pessoa de sua família a ingressar em uma instituição da Rede Federal. Ele está no sexto período do curso de licenciatura em Ciências Agrárias, no Instituto Federal do Amazonas (IFAM).


Para Nanderson, o conhecimento é um dos pilares mais importantes para o desenvolvimento pessoal. “Ser um estudante do Ifam é muito gratificante para mim, pois me proporciona ser um ser humano em busca de conhecimento, conhecer novos lugares e oportunidades e, assim, fazer o verdadeiro propósito da Educação, que não é apenas transferir conhecimento, mas acender a chama dele nas mentes das pessoas”, afirmou o estudante do Ifam.


Em outubro de 2023, Nanderson representou o Ifam no 7º Fórum de Ciência e Sociedade, evento realizado na França. Na ocasião, ele teve a oportunidade de estar em contato com outras pessoas, lugares, culturas, hábitos e visões de mundo. Ele também visitou agricultores e plantações locais, momento que o permitiu, na prática, trocar experiências e apresentar os conhecimentos tradicionais de seu povo.


“O Fórum foi importante, porque tivemos interação com estudantes franceses e brasileiros, de outros regiões do Brasil. Aprendi um pouco da cultura deles, mas também ensinei. Além de ser estudante, sou artista plástico e artesão. Participei de uma oficina de artesanato sobre construção em vime [uma planta parecida com o cipó]. O professor estava ensinando a fazer um peixe. No início, eu não estava entendendo, porque ele estava explicando em francês. Mas como sou artesão e também faço cestos e peneiras, rápido eu aprendi. Depois ensinei aos estudantes que estavam presentes”, contou, empolgado, Nanderson.


“Eu percebi, naquele momento, que o professor queria se comunicar comigo. Perguntou se eu falava inglês e eu disse que não. Então, eu me comuniquei com ele em espanhol, apesar de não falar muito a língua. Mas deu para dialogarmos. Fiquei tão feliz, pois eu consegui me comunicar em outra língua, houve troca de experiências. Falei para ele que no Amazonas fazemos esse tipo de artesanato. Não com o vime, mas com o cipó-titica. Mostrei fotos e ele gostou muito. Ele me convidou para apresentar os artesanatos e as experiências que tive para os estudantes. Foi uma experiência enriquecedora”, completou.


Região Centro-Oeste

Do Centro-Oeste do país, Isaias Valério, indígena do povo Terena e estudante de Jogos Digitais do Instituto Federal de Mato Grosso do Sul (IFMS), conta sobre o seu crescimento no espaço acadêmico da Rede Federal e também sobre como ele levou o conhecimento adquirido para o seu território. Isaias é também formado no curso técnico em Informática.


“Hoje eu tento aplicar os conhecimentos que o IFMS me deu em quase tudo. Em 2022, entrei em um projeto de extensão para ser tutor de um curso para estudantes da minha aldeia. E, mesmo só tendo quatro estudantes matriculados, foi muito bom ter os ajudado a concluir. Agora, no meu curso de Jogos Digitais, estou pensando em dar atendimento para alguns alunos que ainda não entendem bem a parte da Programação ou têm dificuldade. Eu mesmo desenvolvi uma aplicação web com o objetivo de preservar a cultura e a língua indígena”, disse, orgulhoso.


Mas Isaias viveu também momentos desafiadores, chegou até mesmo pensar em desistir de seu curso por achar que não tinha capacidade.


“O IFMS me deu uma base de estudo que eu não tive quando saí do Ensino Fundamental. Foram muitos os momentos que eu já quis sair por sentir que eu não ia conseguir terminar, mas minha mãe acadêmica, a professora Karina, nunca desistiu de mim e sempre me motivou a continuar estudando. Sempre que consigo ajudar em eventos ou atividades pelo IFMS, tento retribuir esse conhecimento e oportunidade que o instituto me permitiu ter”, conta o estudante.


Com o passar do tempo, o estudante, que tinha vergonha de se vestir com os elementos ancestrais de seu povo, passou a se empoderar. “Em 2022, eu comecei uma tradição minha de vir para o IFMS e passar o dia com pintura facial e com um cocar. Antes, eu tinha um pouco de vergonha. Mas hoje eu sinto quase como se fosse uma obrigação minha de me impor”.


Em conversa com o Conif, Isaias destacou, ainda, prêmios que ganhou pela Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace). “Ganhamos o primeiro lugar geral, primeiro lugar multidisciplinar e o prêmio de melhor trabalho de Nível Médio Técnico, em 2020. Na Febrace 2021, ganhamos o terceiro lugar em Ciências Sociais Aplicadas e o prêmio Excelência FeNaDante. E também segundo lugar em Linguista, Letras e Artes”, conclui.


Região Sul

Margarete de Oliveira Outeiro, indígena do povo Kaingang, ingressou no ano passado no curso de Instituto Federal Catarinense (IFC). Margarete cursa Pedagogia com ênfase na Educação do Campo. Em entrevista, ela conta que se sentiu acolhida logo no início de sua trajetória pela instituição.


“Desde o momento que entrei no IFC, já vi que ali me sentia bem. Em nenhum momento me senti rejeitada por ser indígena. E, quando chegou o mês dos Povos Indígenas [abril], os professores me convidaram e também chamaram outros colegas para organizar um evento em comemoração ao Dia dos Povos Indígenas, o dia 19 de abril. E foi, então, que nunca mais deixamos de comemorar essa data na instituição”, conta.


Em quase um ano e meio de curso, Margarete já está atuando na área tão almejada. “O Instituto Federal Catarinense abriu as portas para o meu futuro e me ajudou bastante. Estou no terceiro semestre e já estou trabalhando como professora substituta”.

“Eu tento dar o meu melhor no instituto federal, colaborando com o que precisarem de mim. Já tenho a oportunidade de aplicar o conhecimento que estou adquirindo no IFC dentro das salas de aula”, finaliza.


Região Nordeste


Diretamente de Pernambuco, Marivânia de Lima Feitoza, do povo Xukuru do Ororubá, está se especializando em Interculturalidade e Decolonialidade na Educação Escolar Indígena e Quilombola, no Instituto Federal do Sertão Pernambucano (IFSertãoPE). A pós-graduação, que teve início em 2022, é realizada em formato virtual.


Mesmo à distância, Marivânia afirma que vive uma experiência enriquecedora pelo instituto. “Apesar do curso ser ofertado com aulas síncronas e assíncronas, em formato online, tive a oportunidade de ter contato com vivências de outros povos indígenas e quilombolas”.


“Além disso, já pude participar de uma aula inaugural no campus Floresta, do IFSertãoPE, onde conheci alguns professores pessoalmente. Foi bem positiva essa interação entre estudantes e docentes”, completa.


Hoje a indígena do povo Xukuru do Ororubá aplica os seus conhecimentos em sala de aula, já que é professora do Ensino Fundamental na aldeia de seu povo. Marivânia afirma que o IFSertãoPE colabora com o seu desenvolvimento perante a pauta dos povos e comunidades tradicionais.


“A pós contribui para o meu aprimoramento no ensino da temática indígena e quilombola. Colaboro com o Instituto por meio da minha ativa participação no curso de especialização e com a minha própria pesquisa, sobre os Eixos Norteadores da Educação Escolar Indígena do povo Xukuru do Ororubá, que ainda está em desenvolvimento”.  


Região Sudeste​​

Inspiração em sua aldeia, Ytxaha Braz e sua irmã, pertencentes aos povos Pankararu e Pataxó, foram as primeiras a sair do território ancestral para estudar. Foi no Ensino Superior que as duas ingressaram no Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG) através do curso de tecnólogo em Gestão Ambiental. Mais tarde, a irmã caçula, motivada a seguir o mesmo caminho, fez Agroecologia no Ensino Médio e, atualmente, está matriculada no curso de Eletricista – ambos no IFNMG.


De acordo com Ytxaha, com a sua saída do território para construir uma trajetória acadêmica e profissional, jovens de sua aldeia enxergaram a oportunidade de também estudar em uma instituição da Rede Federal.


“Para mim, ter sido uma estudante do IFNMG foi muito importante, porque a gente, do Vale do Jequitinhonha [MG], quer muito ter a oportunidade de estudo. A gente vê que, no passado, não tinha essa possibilidade. E hoje essa condição é acessível. Lógico que temos que lutar por melhorias, como o transporte, mas só de ter um instituto federal na região, ficamos felizes com esse desenvolvimento. Sinto orgulho por finalizar o curso e hoje ser referência também”, orgulha-se, Ytxaha.


Atualmente, Ytxaha dá aula a estudantes do Ensino Fundamental de seu território. E afirma realizar um trabalho com esses estudantes para que sigam uma trajetória dentro das instituições da Rede.


“O IFNMG colaborou muito com minha vida no sentido de complementar os conhecimentos. Eu vim de uma trajetória de ensino [no território] que é voltada para a Agroecologia, para a questão ambiental. Então complementou esse conhecimento que eu tinha acesso. Ter conhecido professores que hoje são referências colaborou bastante com o meu aprendizado e hoje eu colaboro com o Instituto também, no programa Mulheres Mil. Dou aula no curso de Artesã de Biojoias”, afirmou Ytaxaha.


“A vivência que tive em sala de aula foi muito importante. A cada leitura, a gente tinha contato com outras experiências. As leituras que os professores levavam para as salas de aula geravam discussões interessantes, porque é outro tipo de leitura [em relação à leitura de seu povo]. Então isso foi importante também e hoje eu aplico esse conhecimento em minha comunidade, juntamente com o meu povo. Uso essas duas referências, o conhecimento que adquiri em minha comunidade e também no instituto federal”, complementa e finaliza.

Diretoria de Comunicação do Conif

Texto: Marina Oliveira/Conif
​Fotos: Arquivo Pessoal

Arte: Detalhe da capa do caderno Semana dos Povos Indígenas 2021 do COMIN