“Um dia me proibiram de ler e queimaram meus livros. Um dia tiraram a lâmpada do meu quarto e eu li, à luz de velas, durante as madrugadas. Um dia me tiraram a vela, mas eu resisti”. A fala de Izabel Nazaré Campos, agora mestra em Educação Profissional e Tecnológica pelo IFSC – Câmpus Florianópolis, traduz a força que conduz sua trajetória e o sentido de sua pesquisa: dar voz às mulheres que, como ela, transformaram desafios em potência e encontraram na educação um caminho de libertação.
O resultado dessa jornada é o site Tecendo Vozes – produto desenvolvido por Izabel como parte de seu mestrado –, um espaço digital que reúne relatos de mulheres participantes do Programa Mulheres Mil, do IFSC Câmpus Gaspar. Mais do que um repositório de histórias, é uma plataforma de escuta e acolhimento, onde cada narrativa reafirma o poder emancipador do aprendizado e do pertencimento.
“Concluir o mestrado aos 60 anos foi a realização de um sonho de uma vida inteira. Envelhecer não é opção, desistir dos objetivos sim”, conta Izabel, que também lembra, com humor, de outras conquistas tardias: “Aprendi a dirigir aos 53 anos. Senti medo? Sim. Mas fui com medo mesmo assim. Hoje vou para todos os lugares”.
Filha de uma família humilde, Izabel cresceu em um ambiente onde estudar “não era coisa de mulher”. “Eu era proibida de ler, pois na concepção de meus pais, atrapalhava nas tarefas domésticas”, relembra. Mas, mesmo enfrentando barreiras impostas por uma cultura que limitava seus sonhos, ela nunca deixou de acreditar na força da educação.
Aos 26 anos, após fazer um curso de telefonista no Senac, conseguiu seu primeiro emprego, na RBS TV, sem ter ainda o ensino fundamental completo. “Aquele curso me fez sentir capaz, confiante. Fui estudar por módulos, supletivo do EJA [Educação de Jovens e Adultos].Depois disso, eu nunca mais parei”, conta.
Essa experiência – de como uma nova chance pode reconfigurar percursos – é o elo que a conecta profundamente ao Programa Mulheres Mil. “Elas saem do Programa sabendo que são capazes de reconstruir suas vidas, mudar a rota sempre que for preciso. Elas saem acreditando no poder da educação como instrumento de mudança”, afirma.
Das vivências à pesquisa: o nascimento do Tecendo Vozes
A ideia do site nasceu da vontade de compartilhar as vozes das mulheres entrevistadas, não apenas os resultados de uma pesquisa acadêmica. “Eu até pensei em escrever um livro com minhas histórias, mas achei que o protagonismo devia ser delas. O formato digital é mais acessível, interativo e permite que qualquer pessoa com um celular possa conhecer essas trajetórias”, explica Izabel.
O site reúne nove histórias (de brasileiras, haitianas e venezuelanas) que participaram do Programa Mulheres Mil no Câmpus Gaspar. As entrevistas, realizadas com sensibilidade, revelam desafios e conquistas de mulheres que encontraram no curso uma oportunidade concreta de mudar suas vidas.
“As mais receptivas foram as brasileiras. As haitianas são extremamente inseguras e desconfiadas; as venezuelanas, um meio termo. Mas todas, sem exceção, falaram com gratidão. Muitas arrumaram emprego, melhoraram a comunicação, pensam em retomar os estudos. Eu me vi em todas elas”, revela emocionada.
Entre essas vozes está a de Luana Aparecida Gambirazi, 31 anos, moradora de Gaspar e uma das participantes do site. Aluna do curso de costura do Programa Mulheres Mil, Luana viu ali o momento de recomeçar. “Eu estava procurando algo pra ter como profissão. Já sabia um pouco de costura e vi que essa era uma possibilidade para aprender mais. A principal dificuldade que eu enfrentava era a falta de oportunidades”, relata.
Hoje, ela trabalha em uma empresa de costura industrial e sonha em abrir o próprio negócio. “O que mais me marcou foram as amizades e o acolhimento. Foi muito gratificante me ver representada no Tecendo Vozes, como exemplo de força e superação”.
Para Izabel, ouvir depoimentos como o de Luana é a maior recompensa. “As participantes disseram: ‘o site tá lindo’, ‘me senti representada’. Isso é gratificante demais. É o reconhecimento de que a pesquisa cumpriu seu propósito”, avalia.
Educação profissional com sentido social
O Tecendo Vozes é fruto da dissertação Entre transformações e trajetórias: uma avaliação dos possíveis impactos do Programa Mulheres Mil na vida de suas egressas. A orientadora da pesquisa, professora Crislaine Gruber, e o coorientador, professor Igor Thiago Mendonça, acompanharam de perto o desenvolvimento do projeto, que também reafirma o papel do Mestrado Profissional em Educação Profissional e Tecnológica (ProfEPT) como espaço de produção de conhecimento comprometido com a transformação social.
Para Izabel, ao estimular pesquisas que dialogam com as demandas reais da sociedade, o programa foi fundamental para amadurecer sua visão crítica sobre a educação profissional e tecnológica: “O ProfEPT estimula reflexões sobre a função social da EPT e incentiva a criação de produtos educacionais voltados à inclusão, à emancipação e à melhoria das condições de vida das comunidades atendidas. A profunda reflexão sobre a precarização do trabalho. Compreendi que existe um abismo separando mundo do trabalho de mercado de trabalho, um entendimento que antes eu não tinha”.
O Tecendo Vozes é, portanto, é mais do que um produto acadêmico. É um ato político e educativo, que se propõe a devolver à comunidade os frutos de uma pesquisa comprometida com a escuta e o diálogo. Dessa forma, também se tornou um espaço de pertencimento para as participantes do Mulheres Mil. Ao se verem retratadas, elas reafirmaram sua identidade e sua importância dentro de uma rede coletiva.
A recepção do site entre as egressas foi carregada de emoção. Uma delas declarou: “O site servirá de motivação para outras mulheres acreditarem em si mesmas”. Outra afirmou: “Me senti verdadeiramente representada”.
Mulheres Mil e a educação como libertação
Desde 2011, o Programa Mulheres Mil tem sido um espaço de acolhimento e formação dentro do IFSC. Voltado a mulheres em situação de vulnerabilidade social, o programa oferece cursos gratuitos de qualificação profissional. Além de Gaspar, ações da iniciativa já são desenvolvidas nos câmpus Araranguá, Criciúma, Florianópolis-Continente, Jaraguá do Sul – Centro, Joinville e Lages. Há previsão de que, em breve, iniciem também em Caçador, Palhoça Bilíngue, São Carlos, São Lourenço do Oeste e São Miguel do Oeste.
Conheça os câmpus do IFSC com ações pelo Programa Mulheres Mil
Para Izabel, o impacto vai além da sala de aula: “O maior legado do Mulheres Mil é o fortalecimento, são as oportunidades criadas”, conta. No Tecendo Vozes, essa transformação aparece em cada história. Entre os resultados apontados pela pesquisa estão autonomia econômica, fortalecimento da autoestima, redes de apoio, empoderamento e inclusão social.
Com presença em todas as regiões de Santa Catarina, o IFSC reforça, por meio de iniciativas como essa, seu papel na promoção de uma educação que pode ser transformadora. “O envolvimento e o acolhimento de docentes e gestores consolidam a rede de apoio às mulheres, estimulando o protagonismo e a inserção no mundo do trabalho”, destaca.
Tecendo futuros: o poder da reinvenção
Ao final da entrevista, Izabel reflete sobre o significado dessa conquista e deixa uma mensagem para outras mulheres que sonham em estudar, mas acreditam que “já passou da hora”:
“O momento ideal é aquele em que aparece uma boa oportunidade. O que importa é ter energia e vigor – e isso não tem nada a ver com idade cronológica. Tem muito jovem idoso e muito idoso jovem. Penso que, se eu tenho que envelhecer, que seja envolvida com tudo aquilo que me dê prazer e me faça evoluir. Se eu acreditasse que meu tempo tinha passado, não teria feito o mestrado nem sido aprovada em um concurso público aos 49 anos”, diz ela, que atualmente é servidora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
E sua história de conquistas promete ter novos capítulos: “O mestrado não é o fim. Em 2026 quero pleitear uma vaga no doutorado em Educação Científica e Tecnológica da UFSC”, finaliza.
Diretoria de Comunicação do Conif
Texto: Maykon Oliveira/IFSC
Foto: Acervo pessoal