Para muitos surdos e/ou deficientes auditivos, a Libras, Língua Brasileira de Sinais, é a língua natural ou principal. O baixo quantitativo de ouvintes fluentes em Libras, no entanto, dificulta muito a comunicação dos surdos nas mais cotidianas situações e os deixa isolados. Muitas vezes, as barreiras linguísticas começam na própria casa, quando as famílias de crianças surdas são resistentes à língua de sinais ou mesmo a desconhecem.
Segundo a professora de Libras do IF Baiano, Daniele Barreto, muitas crianças surdas só acessam a Libras ao ingressar na escola e, até lá, se comunicam através de gestos, mímicas, expressões faciais e corporais, que não dão conta de expressar todas as ideias e pensamentos. Quando aprendem a Libras e adquirem fluência, se encantam pela sua naturalidade.
Foi assim com Anderson Almeida Mota, egresso do curso Técnico em Agropecuária do IF Baiano – Campus Itapetinga. Ele nasceu com perda auditiva moderada numa família sem pessoas surdas em seu núcleo mais próximo. Até os seis anos de idade, se comunicava apontando, fazendo gestos e mímica. Com 7 anos, uma visita inesperada o apresentou alguns sinais da Libras. Era uma pessoa que ia de casa em casa para levar ensinamentos da sua religião.
Depois disso, Anderson conheceu alguns surdos, que falavam Libras, com quem pôde conversar e, rapidamente, aos 8 anos, adquiriu fluência na Libras, sua língua natural. A vida parece ficar mais fácil quando um indivíduo ganha fluência na sua primeira língua, mas imagine dominar sua língua natural e encontrar pouquíssimas pessoas ao seu redor que também a domine?
Mesmo após ser reconhecida oficialmente em 2002, a Língua Brasileira de Sinais ainda não é utilizada pela maioria da população, pois não é ensinada nas escolas como o português oral e escrito. Isso representa uma barreira na interlocução de pessoas surdas com o resto do mundo. A Lei garante que a Libras deve ser ensinada aos surdos nas escolas como primeira língua e o português escrito como segunda língua.
Desafios na escolarização do surdo
Anderson conta que em sua vida escolar tudo foi mais difícil para ele do que para os alunos ouvintes. Ele nem sempre teve intérpretes nas escolas e poucos são os professores que compreendem Libras e as diferenças da Libras e da Língua Portuguesa (LP) para entenderem como se dá a escrita e leitura da escrita de LP por surdos.
Ingressar numa instituição de ensino técnico profissionalizante foi um desafio para Anderson. Embora o Decreto 5.626, de 2005, determine que as instituições federais de ensino devem garantir ao surdo a acessibilidade de comunicações através da utilização da Língua Brasileira de Sinais e contem com tradutores de Libras para isso, a plena garantia desse direito ainda requer outros esforços. “Sofri muita coisa quando entrei, porque são muitas disciplinas, é muito difícil. Disciplinas técnicas com novos sinais, nova comunicação. Não foi fácil, mas me esforcei, aprendi muita coisa e me formei”, conta.
Para alguns termos técnicos utilizados em sala de aula sequer existem sinais em Libras, o que levou Anderson, junto a servidores e outros alunos surdos do IF Baiano, a desenvolver e divulgar em eventos acadêmicos novos sinais para termos técnicos em Agropecuária.
Os Institutos Federais não são escolas bilíngues (com a Libras como língua principal junto ao Português para surdos e não surdos) e ainda caminham para ser e oferecer acessibilidade plena a surdos. Nesse caminhar, há pessoas que se dedicam a estudar e desenvolver pesquisas científicas para garantir a popularização da Libras e aumentar a acessibilidade não apenas nos Institutos, mas na sociedade brasileira como um todo.
Pesquisas sobre letramento em Libras
Um grupo de servidores do IF Baiano, vinculados ao Grupo de Pesquisa das Estruturas Gramaticais e Aquisição da Linguagem (GPEGAL/UESB), vêm estudando e desenvolvendo pesquisas sobre o Sistema de Escrita para Libras (SEL), criado pela professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Adriana Lessa-de-Oliveira.
Pessoas alfabetizadas na língua Portuguesa têm acesso à leitura de textos, notícias, mensagens e uma infinidade de livros. A escrita do Português é a representação dos sons para formar sílabas e palavras. No processo de alfabetização em Língua Portuguesa, portanto, pessoas com deficiência auditiva têm mais dificuldade na aprendizagem que pessoas ouvintes. O objetivo do sistema de escrita de Libras (SEL) é promover formas de inclusão das pessoas com deficiência auditiva no mundo letrado. A Escrita SEL consiste, basicamente, em transformar os sinais gestuais em sinais gráficos.
Segundo a professora Adriana Lessa-de-Oliveira, a representação da Libras pela escrita SEL ocorre através da representação da articulação do sinal por meio de caracteres (letras e diacríticos), os quais indicam: a configuração e a posição da mão na realização do sinal; a parte do corpo que compõe o sinal e onde essa parte é tocada; e o tipo de movimento feito pela mão, incluindo o plano e a direção desse movimento. Assim, explica a autora, ao se ler um sinal escrito em SEL, identifica-se exatamente como esse sinal é realizado.
O trabalho de pesquisa para elaboração do sistema SEL iniciou-se em 2009, e após desenvolver algumas versões, em 2018, chegou-se à versão mais satisfatória do sistema para começar a ser utilizada em propostas pedagógicas. Adriana explica que a tarefa de elaboração de um sistema de escrita não é simples e o seu maior desafio foi buscar uma base fonológica para o SEL, algo que exigiu uma investigação paralela sobre a articulação de línguas de sinais. Assim, Adriana acabou por chegar também a uma proposta de estrutura fonológica para o sinal em Libras, a Estrutura MLMov (Mão, Locação e Movimento).
Integrados ao GPEGAL, os pesquisadores do IF Baiano, o professor Wasley de Jesus Santos e a intérprete de Libras, Carine Gurunga de Matos, do campus de Itapetinga; o professor Bruno Niella e a professora Daniele dos Santos Barreto, do campus de Uruçuca participam da etapa de trabalho que envolve o desenvolvimento de pesquisas sobre a gramática da Libras e sobre a aquisição da linguagem por surdos. Esses trabalhos tomam a estrutura MLMov como fundamento e utilizam o SEL como ferramenta de transcrição de dados e de auxílio às análises.
A intérprete de Libras e doutoranda em Linguística, Carine Gurunga de Matos, desenvolveu, em seu mestrado, uma pesquisa a respeito da consciência sintática em Libras, que resultou na criação do TCSL – Teste de Consciência Sintática da Libras. Esse teste foi aplicado antes e depois do ensino do SEL e os resultados mostraram que a aprendizagem de uma escrita de sinais como o SEL melhora significativamente o conhecimento do falante acerca da estrutura sintática da língua de sinais. No doutorado em curso, a pesquisadora estuda o fenômeno natural da criação de sinais em Libras.
A professora de Libras e doutoranda em Linguística, Daniele Barreto, realizou, em seu mestrado, um estudo sobre a Consciência Fonológica em Libras, utilizando a escrita SEL. A pesquisadora desenvolveu, com base na estrutura articulatória do sinal proposta por Adriana Lessa-de-Olivira, o Teste de Consciência Fonológica da Estrutura MLMov, o TCFE-MLMov, uma ferramenta de análise que possibilita indicar níveis de percepção da estrutura articulatória do sinal, podendo auxiliar no processo de avaliação e planejamento da alfabetização em Libras. Atualmente, no doutorado, a pesquisadora continua sua investigação sobre o processo de aquisição da escrita de Libras.
O professor de Libras e doutorando em Língua e Cultura, Wasley Santos, desenvolveu sua pesquisa de mestrado a respeito do fenômeno linguístico das trocas entre categorias de palavras que ocorrem no processo de aprendizagem do Português escrito por surdos (interlíngua). O pesquisador utilizou a escrita SEL para a transcrição de alguns dados em Libras de sua investigação. Esse trabalho resultou na publicação do livro Sobre nomes e verbos na interlíngua de surdos brasileiros, pela Editora CRV, em 2019. No doutorado, Wasley continua estudando os atritos linguísticos decorrentes do contato da Libras com o Português escrito.
Editor de Texto para digitação em SEL
O professor de Informática, Bruno Niella, desenvolveu em sua pesquisa de mestrado em Ciências da Educação – Especialização em Tecnologia Educativa, realizada na Universidade do Minho, em Portugal, um software editor de texto para o SEL. Este editor permite a digitação de textos em SEL, em notebooks e desktops, utilizando-se o teclado de maneira prática e eficiente. O software foi batizado de E-SEL, por ser um editor digital do sistema, o qual poderá ser utilizado nas mais variadas situações de uso da Libras escrita, inclusive em propostas de alfabetização nessa língua.
Segundo os pesquisadores, a produção dessa ferramenta tecnológica poderá ajudar a criar condições de ampliação das possibilidades de acesso dos surdos ao universo da escrita, abrindo caminho para a expressão escrita na sua língua natural, através da realização de escrita em Libras no meio digital. Tal recurso poderá refletir na ampliação das condições de aquisição de conhecimentos de forma geral e do conhecimento sobre o próprio Português escrito. Além dessa perspectiva de uso educacional, o E-SEL também servirá ao trabalho de pesquisa na transcrição de dados e no registro documental acadêmico.
A atuação de membros do IF Baiano não se limita aos pesquisadores. Estudantes surdos da instituição também têm somado contribuições a esse trabalho. Em 2019, cinco estudantes surdos do IF Baiano, entre eles, Anderson Mota (citado no início da reportagem), colaboraram com essas pesquisas, participando de um curso de Escrita SEL e respondendo aos questionários sobre a aquisição desse sistema de escrita. “Eu gostei muito de aprender a Escrita SEL, pois ela é simples e em pouco tempo de curso já consigo identificar seus caracteres. Gostaria muito que houvesse uma lei no país que implementasse o ensino da Escrita de Libras para todos os surdos”, relata Anderson.
Segundo a professora Daniele, alguns alunos não imaginavam que sua língua pudesse ser escrita e conhecer o SEL causou-lhes espanto e muita alegria. Acostumados a escrever em Português com toda a dificuldade que uma língua fonológica impõe a pessoas com deficiência auditiva na escrita, exercitar a escrita de sua língua materna pode ser mais prazeroso, mais intuitivo e fluido. “Para fazer uma redação em Português, é muito difícil, porque eu estou pensando sobre aquele tema em Libras, então, eu tenho que fazer uma tradução para o Português. Na hora de colocar no papel, às vezes a gente se confunde, troca uma palavra ou a ordem”, explica Anderson.
De acordo com Daniele, o sistema de escrita passou por algumas versões para melhor atender ao critério de automatização do processamento. “A leitura e escrita devem fluir de modo suave, como acontece conosco que somos usuários do sistema alfabético de escrita do Português Brasileiro”, explica. A docente explica que a versão atual está boa para o uso, conforme indicam os testes com pessoas surdas; o que não impede que, à medida que for usada, a escrita seja ainda mais enxugada, tornando o sistema ainda mais econômico.
As pesquisas ainda são recentes, mas comprovam a efetividade do Sistema de Escrita e como o letramento em Libras impacta positivamente no letramento de surdos em Português. Até que surdos tenham acesso a produzir e consumir conteúdo escrito em Libras, como textos, livros, aplicativos de mensagem, há que se percorrer um caminho para a popularização do SEL. Para Daniele, esse caminho passa pelo crivo de investimento em políticas linguísticas, como a alfabetização e letramento em escrita de língua de sinais na educação básica, bem como a produção de materiais nessa escrita.
Acessibilidade plena
A luta dos surdos e dos pesquisadores do IF Baiano na área da Libras vai além do acesso de pessoas com deficiência auditiva a intérpretes de Libras, o que já é difícil, devido à pouca oferta de profissionais tradutores no mercado. O que desejam é que surdos possam se comunicar em Libras efetivamente com toda a população, em todos os lugares e instituições. “A gente defende que todo mundo deveria aprender Libras já nas escolas desde crianças, porque temos uma população muito grande de surdos no Brasil (cerca de 10 milhões)”, explica Carine Guruga, intérprete de Libras para Anderson.
Para Carine, a inclusão da pessoa surda na sociedade só acontece de fato, se ela puder se comunicar com seus colegas, seus professores e atendentes em instituições. “O surdo precisa ir ao banco e precisa levar o intérprete, porque o atendente no banco não fala Libras; precisa ir ao médico, ao psicólogo. Imagine o desconforto que é você falar de coisas íntimas, pessoais na frente do intérprete?”, pontua Carine.
Além de todas essas pesquisas e outros projetos na área de inclusão da pessoa com deficiência auditiva, o IF Baiano oferece periodicamente cursos de Libras presenciais e on-line para sua comunidade. Esses cursos fazem com que familiares, colegas e amigos de pessoas surdas aprendam Libras e se comuniquem melhor com elas, além disso, capacita pessoas para atuarem como intérpretes de Libras, profissão que tem déficit de profissionais qualificados, e capacitam professores que atuam com surdos para oferecer uma educação mais inclusiva.
Acesse a página Concursos e Seleções, no portal do IF Baiano, e busque por Libras para encontrar os editais de cursos nessa área.